Por Helena de Souza Marcon*
Dos Fatos
O curso de Obstetrícia na unidade da USP, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, iniciou seus trabalhos no ano de 2005 junto a mais 9 (nove) cursos. Nos seus anos de funcionamento passou por algumas mudanças de grade curricular, contudo foi aprovado pelo Conselho Estadual de Educação.
O curso forma obstetrizes, que são as profissionais responsáveis pelo parto e pelos cuidados à gestante, o que inclui o acompanhamento de todas as fases do ciclo gravídico-puerperal: pré-natal, parto e pós-parto. Sua formação se dá através de disciplinas teóricas divididas em três eixos: Bases Biológicas; Ciências Humanas, Sociais e da Saúde; e, Assistir, Cuidar e Gerenciar. Garantindo formação teórica e prática, com enfoque na humanização e valorização do parto normal. Nos países em que a carreira de obstetriz está mais consolidada, com intensivo apoio do Estado, os dados relativos à morbimortalidade do nascimento diminuíram significativamente, configurando assim uma fase crucial para o processo de transição demográfica.
O Brasil tem apresentado dados preocupantes com relação à mortalidade neonatal e cuidados e assistência à gestante, pesquisa denominada de “Mulheres Brasileiras e gêneros nos espaços públicos e privado” realizada pela Fundação Perseu Abramo e pelo SESC, divulgada pela Folha, aponta que no mês de Agosto de 2010, em 25 Estados brasileiros, uma em cada quatro mulheres declararam ter sofrido algum tipo de abuso na hora do parto pelos profissionais da saúde. O quadro alarmante da saúde ressalta ainda mais o destaque das (os) obstetrizes para a melhoria dos serviços de atendimento do SUS.
Por parte do Conselho Regional de Enfermagem (COREN), viu-se claramente uma recusa em registrar os egressos de Obstetrícia e também forte pressão para impedir os estágios e a atuação no campo profissional.
Apesar de um acordo firmado no ano de 2010 com o COREN, que estabelecia o registro mediante alterações curriculares, no início de 2011 o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) emitiu parecer indicando contrariedade ao registro das profissionais. O que fez com que o COREN voltasse atrás no acordo de registro para os egressos que realizassem complementação curricular conforme o acordado em 2010.
Devido a um relatório apresentado pela unidade da USP, que sugestionava a alteração do curso para Enfermagem Obstétrica, ocorreu um forte movimento estudantil, de mães e de associações ligadas à causa para a manutenção do nome e da estrutura curricular do curso, entendendo que as alterações necessárias já haviam sido feitas no ano de 2010 e que a sugestão apresentada não refletia a verdade identidade do curso. Após várias manifestações, aprovou-se na Comissão de Graduação da Unidade que nenhuma mudança seria feita.
Os alunos egressos que até o momento entraram com ação judicial, conseguiram o registro mediante mandado judicial e atualmente exercem normalmente a profissão, conforme previsto pela Lei nº 7.498, inciso II parágrafo único: a) assistência à parturiente e ao parto normal; b) identificação das distocias obstétricas e tomada de providências até a chegada do médico; c) realização de episiotomia e episiorrafia e aplicação de anestesia local, quando necessária.” E os alunos têm estagiado normalmente sob supervisão.
Do Direito
O artigo 2º da Lei nº 7.498, de 25 de Junho de 1986 estabelece que:
A enfermagem e suas atividades auxiliares somente podem ser exercidas por pessoas LEGALMENTE habilitadas e INSCRITAS no Conselho Regional de Enfermagem com jurisdição na área onde ocorre o exercício. (grifo meu)
Se a habilitação legal das profissões se dá através dessa mesma lei em seu artigo 6º inciso II, dispõe que:
são enfermeiros: o titular do diploma ou certificado de Obstetriz ou de Enfermeira (o) Obstétrica, conferido nos termos da lei;
E o diploma de Obstetriz, por sua vez, é conferido pela Universidade de São Paulo, gozando de sua autonomia estabelecida pela Constituição Federal em seu artigo 207:
As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
O curso deve ser legalmente também sujeito ao reconhecimento do Conselho Estadual de Educação segundo o inciso X do artigo 2º da Lei N.° 10.403, de 6 de Julho de 1971 que estabelece como competência do mesmo:
autorizar a instalação e o funcionamento de universidades estaduais e municipais ou mantidas por fundações ou associações instituídas pelo Poder Público estadual ou municipal; aprovar-lhes os estatutos e regimentos gerais e suas alterações; reconhecê-las e aos novos cursos que venham a ser por elas criados nas formas dos respectivos estatutos ou regimentos gerais;
Neste caso, vemos um instrumento de proteção à sociedade, tal qual como o Conselho Regional e Federal de Enfermagem, se transformar em instrumento político que em detrimento da garantia de direitos fundamentais ao livre exercício do trabalho que atender as qualificações profissionais que a LEI estabelecer, como o disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, acaba por defender seus próprios interesses de corporação.
Para além da ilegalidade do COREN, em negar o direito ao registro profissional aos egressos do curso, ele ainda se torna inconstitucional ao julgar matéria que não é de sua competência, como a formação universitária garantida na forma da Constituição.
Este caso exemplifica de maneira ilustrativa, o apresentado por Edson Nunes em “As Gramáticas Políticas do Brasil”, ao afirmar que o Corporativismo se fez muito presente no cenário político, e, portanto defini a prática recorrente como Gramática. Posso afirmar com clareza que o governo ao criar instrumentos de controle dos trabalhadores, no caso do Corporativismo, acaba por infringir Direitos, pois a instituição de tal prática em um Estado Democrático de Direito não respeita em nenhum momento a Constituição da República Federativa do Brasil, que está acima de qualquer outra lei no ordenamento jurídico.
Vale ainda para expor o posicionamento da Universidade de São Paulo, perante as ações deste Conselho, que ao invés de fazer valer seus próprios direitos garantidos pela Constituição no âmbito da autonomia didático-científica prefere apresentar propostas de alterações que se submetam as pressões destes Conselhos. Ignorando dessa forma inclusive toda sua produção acadêmica, relativa à necessidade e relevância de profissionais que atuem especificamente na saúde da mulher.
Com este artigo, pretendi apresentar de que maneira as articulações sociais acontecem, e que entre um assunto de tamanha importância para a saúde brasileira, podem se apresentar um jogo de forças políticas que não respeitam as leis estabelecidas. E que o problema do Brasil, não são as leis, na maioria das vezes, mas sim o cumprimento delas. E a melhor solução que se faça sempre valer a Constituição da República Federativa do Brasil, este caso pode nos guiar: participação e controle social!
*Helena de Souza Marcon
Estudante de Gestão de Políticas Públicas da EACH USP
Representante Discente
Diretora do Centro Acadêmico Herbert de Sousa